Ninguém nasce mulher: torna-se mulher, ainda mais no futebol americano
O futebol americano no país, sob a ótica de três mulheres que fazem de tudo pela modalidade que cresce cada vez mais
A frase do título é de Simone de Beauvoir (com exceção da parte do futebol americano, claro), uma das mais influentes autoras do feminismo. É inegável e aparente que é muito difícil ser mulher na sociedade atual.
O The Playoffs encontrou numa das mais tradicionais equipes do país, o Brown Spiders de Curitiba, alguns casos de mulheres inseridas no futebol americano.
Uma é árbitra. A outra, analista de marketing. Por fim, a terceira é atleta. Três mulheres. Três histórias. E a quebra de barreiras numa modalidade que é predominantemente masculina.
Flanela amarela para o preconceito
Amanda Carstens tem 23 anos. Moradora de Curitiba desde o nascimento, tomou gosto pelo futebol americano e passou a torcer pelo New England Patriots. Até aí, histórias como esta pipocam aos montes pelo país. Só que o interesse pelo esporte foi levado além.
“No início de 2013, um colega me incentivou a fazer a clínica de arbitragem da Federação Paranaense, na qual acabei passando em primeiro lugar. Fui muito bem acolhida pela comissão de arbitragem e me tornei a segunda árbitra mulher do estado”, contou.
Entrar num meio “dominado” por homens seria complicado por si só. E o começo não foi nada fácil. Porém, era preciso fazer valer o fato de ser uma autoridade em campo.
“No início houve alguns contratempos com jogadores, em relação ao desrespeito mesmo. Mas que foram rapidamente controlados na conversa ou então, quando necessário, com faltas. Após minha primeira temporada como árbitra, não tive mais nenhuma situação desse tipo.”
Com o preconceito lançado para longe, Amanda conseguiu se destacar pelo que realmente interessava: sua atuação em campo. E isso a fez alçar vôos mais altos.
“Em 2015, fui convidada pela comissão de arbitragem a apitar um jogo como ‘referee’ da partida. Na época, diversos veículos de informação pesquisaram e verificaram que eu seria a primeira árbitra principal mulher registrada oficialmente, o que foi uma grande honra e me ajudou na minha principal motivação dentro do esporte: a divulgação do mesmo em território nacional.”
Ter que provar duas vezes a qualidade no trabalho
O convite veio em 2015. Trabalhar na equipe de marketing do Brown Spiders. Além dos jogadores, a missão seria também ter contato direto com torcedores. Nenhum problema para Ana Lins, de 24 anos.
“Eu nunca sofri com machismo entre os torcedores do Brown Spiders e de outros times aqui do Paraná, pelo contrário, sempre fui tratada com carinho e muito respeito, porém, vejo alguns homens colocando mulheres que gostam de futebol americano como “pra chamar atenção de algum homem que também goste”. Quando converso com alguém que acabei de conhecer (principalmente homens) e digo que gosto, sei as regras, nomes de jogadores e etc, sempre ouço um “nossa, difícil mulher gostar e entender.”
A paixão pelo San Francisco 49ers ajudou Ana em uma das missões que o cargo exige: realizar o play by play das partidas do tradicional time paranaense. O conhecimento sobre o esporte, às vezes, é posto a prova por quem não a conhece:
“Para pessoas que já estão no meio faz tempo, não precisei provar duas vezes a qualidade do meu trabalho e meu conhecimento (que estou adquirindo cada vez mais com o passar do tempo), porém, para outras pessoas que não estão tão envolvidas, já tive que mostrar que não estava ali por qualquer outra coisa que não fosse meu amor ao esporte.”
Um esporte para mulheres, sim senhor!
Tackles, tackles e mais tackles. Não é fácil a vida de atleta de futebol americano. É comum sentir o gosto da grama, literalmente falando. Nada que afastasse Ester Alencar, 18 anos, dos campos. Apesar do que as outras pessoas pensam:
“O sexismo interfere na credibilidade de nossa atuação enquanto atletas para os desconhecidos. O próprio esporte já sofre um preconceito grande por ser “violento”. (…) Diversas vezes na faculdade fui parada quando andava com meu equipamento, questionando se aquilo era meu e se eu realmente jogava. Muitas vezes as próprias mulheres não acreditam que são capazes de jogar por enxergar apenas os homens grandes e brutos praticando esse esporte.”
Ester é uma reconhecida jogadora em território nacional. Recentemente foi eleita MVP do Campeonato Nacional de Flag Football, reforçando temporariamente a equipe Cariocas FA, já que ela atua regularmente pelo Brown Spiders. A pouca estrutura para a prática entre as mulheres é uma constante preocupação:
“Pegando de exemplo a Cariocas FA (…) algumas atletas tem quase 10 anos de futebol americano (areia, flag e full pads), e elas são bicampeãs no full pads, várias meninas do time estão desanimadas pela falta de estrutura de um campeonato como o masculino ou a falta de times realmente competitivos.”
Existe (e muita) vida além das lingeries
Numa rápida pesquisa no Google com a seguinte sentença: “futebol americano feminino”, das 10 primeiras opções de sites, OITO direcionam para links sobre a LFL (Legends Football League).
“Pessoalmente não gosto LFL pelo fato de ser com o mínimo de roupas, gosto da igualdade de gênero dentro do possível sempre. Entendo que elas conseguiram uma atenção imensa pelo fato das roupas (ou falta delas), e assim podem chamar a atenção para o que querem (o esporte na modalidade feminina). Mas não acredito na ideia de usar o corpo feminino nesse sentido”, comentou Amanda.
A LFL, nos Estados Unidos, é a liga mais conhecida de futebol americano entre as mulheres. Fundada em 2003, tem jogadoras atuando com as proteções nos ombros e capacetes, mas seu uniforme se resume a peças íntimas – lingeries.
“(…) fico um pouco decepcionada com o que ela passa para o mundo. Quando você fala de futebol americano feminino as pessoas associam diretamente à LFL, que a meu ver, está longe de ser verdadeiramente futebol americano. É um espetáculo que atinge um público imenso e dá um grande retorno financeiro. As jogadoras são atletas incríveis, porém ao se submeterem a isso acabam levando a imagem da mulher ao futebol americano dessa forma sexista”, completa Ester.
Os EUA só possuem ligas femininas amadoras. Apesar de inúmeras, as premiações são pouquíssimas. Quando crianças, algumas meninas recebem o incentivo para praticar a modalidade. Estas ficam mais raras tanto no ensino médio, quanto na universidade, que acabam focando seu trabalho quase em sua totalidade para os homens.
O Brasil conta atualmente com o Torneio End Zone, o principal na modalidade full pads feminino.
Uma missão complicada e concluída com sucesso
As três personagens contadas na matéria passaram por uma situação que deixaria qualquer marmanjo embaraçado. Era o Wildcard do Campeonato Paranaense. O duelo entre Maringá Pyros e o Brown Spiders estava para começar e o locutor não poderia comparecer. A solução para os Spiders estava clara: Ester teria a missão de passar as informações para os torcedores. E a experiência foi proveitosa:
“Um pouco amedrontador no início, afinal, eu nunca tinha feito isso e não estava preparada para tal, fui convocada 5 minutos antes do início da partida! Mas foi incrível, eu amo futebol americano e diversas vezes brinco com as pessoas que um dia estaria na ESPN, narrar um jogo deu um gostinho de como isso seria.”, comentou, feliz. Ester além de atleta dos Spiders, é treinadora dos wide receivers da equipe de desenvolvimento.
Amanda também acumula outras funções além da arbitragem. É atleta, vice-presidente e auxiliar do coordenador defensivo da equipe feminina do Brown Spiders. Foi convidada por Ester para participar da narração:
“Apesar dela (Ester) saber muito do esporte, não estava 100% confiante, e me pediu para ficar ao seu lado ajudando nos comentários e na narração (pelo meu conhecimento do jogo e de regras). Foi uma parceria muito feliz, fizemos a primeira narração das nossas vidas impondo nossas próprias características. Apesar de não ser tão animada (por conta do nosso nervosismo), foi uma narração bastante didática e esclarecedora para o público.”
“Com a Ester e a Amanda ali do lado foi muito legal, trocamos críticas positivas e construtivas. Nos ajudamos muito, e me impressionei bastante principalmente com a Ester, pois ela foi pega de surpresa e substituiu nosso narrador, que já estávamos acostumados e fez um ótimo trabalho, sem medo de ser feliz”, disse Ana, que também esteve na cabine de transmissão.
O futebol americano é um dos esportes que mais agregam no mundo. Chegou a hora de dar mais espaço as mulheres na modalidade. E o Brasil não pode ficar de fora disso.
Créditos fotos:
Foto 1: Facebook / Brown Spiders Feminino
Foto 2: Dayane Wosch
Foto 3: Acervo pessoal / Ana Lins
Foto 4: João Andrade
Foto 5: Victoria Gorges
Foto 6: Facebook / Brown Spiders
Foto 7: Acervo pessoal / Amanda Carstens